top of page

da arquitetura anónima | o caso da covilhã

«Mas todo o «crítico» ambiciona um dia

libertar-se do curriculum e falar somente

da prova; falar de arquitetura por palavras

que expliquem as travessias; ou simplesmente

enumerar as janelas duplas.»

Jorge Figueira

A dúvida deve acompanhar o arquiteto. Foi com esta reflexão que iniciei a viagem até à Beira Alta. Longe estava de imaginar a certeza deste pensamento. Parti anónimo de como quem não pertence a nada. De quem é nada. A liberdade de ser formado em Évora e não em Lisboa ou no Porto permite-nos isso. Vemos as coisas com a distância crítica necessária e isso liberta-nos.

Desde do início da viagem - partindo de Lisboa - senti que estava em terras do Norte, a própria linha de comboio o demonstrava. A sul, a caminho de Évora, a linha é reta sem percalços. Reta na direção, sem danificar, escava suavemente os territórios ondulantes do Alentejo. A norte até à Covilhã o percurso é desenhado pelo Tejo. Curvado, uma mimesis do rio é assim o percurso da viagem até às beiras. Lembrando-me do livro 'Rua da Estrada' do geógrafo Álvaro Domingues fiz a ousadia de fazer a mesma análise para o comboio. Observava a rua que o comboio tinha desenhado. Casas que mostravam tardoz, cultivos mais ou menos clandestinos, 'hortas urbanas', construções escondidas e possivelmente ilegais. Sentia-me na 'Janela Indiscreta' de Alfred Hitchcock, um voyeurismo puro, quase perverso de quem olha para onde não devia. Assim é a rua do comboio, as traseiras da rua da estrada. O incentivo ao uso do carro através dos grandes investimentos realizados nas estradas portuguesas, fez com que a vida virasse costas à linha ferroviária. A quantidade de indústrias, umas mais ativas que outras, mostram a grande valência do comboio: ser transporte de mercadorias. Mas também esta parece desaparecida.

Passando o Fundão, percorre-se a Cova da Beira e vislumbra-se encaixada nas encostas a cidade da Covilhã. Chega-se pela cota baixa. Depressa nos apercebemos da realidade da cidade: ruas extremamente inclinadas, muros espessos de granito a combaterem as vertentes, e uma enorme proliferação de edifícios de habitação coletiva que se reproduzem sem controlo. A Covilhã parece ser daquelas cidades que não resistiu ao boom de construção dos anos 80 e 90. Dois centros históricos: um na zona alta representado pelo pelourinho e por espaços públicos controlados, o segundo, nos vales, associado às fábricas de lanifícios. Nem um nem outro conseguiram controlar a chegada das novas arquiteturas. Também um desencontro entre o desenho urbano e as suas reais necessidades, associados a uma topografia difícil, fazem com que a cidade se desenvolva sem identidade, refugiada em 'prédios cogumelos' em que cada um tem uma espécie diferente do outro. Estou de volta à rua da estrada.

Todos são diferentes, todos se tornam iguais. Nenhum cria a relação com o lugar, nenhum cria identidade. Todos eles me parecem vazios, sem população, talvez a síndrome de ser uma cidade do interior: edifícios de habitação a mais para população a menos. Salva-se a relação com território. Nada é mais reconfortante ao subir uma rua da Covilhã e parar para descansar, observando-se (quando se consegue) a serra que espreita entre o construído. Da cota alta, a cidade vira costas à serra e é a Cova da Beira a grande anfitriã. Os edifícios apoiam-se nas encostas enquanto deleitam o vale.


«Esta cidade, que foi necessária à formação do país e ao aproveitamento das potencialidades do meio natural que a envolve – pastagens para os rebanhos e águas para o fabrico –, há pouco passou a um estado de improbabilidade, pelo dizimar da beleza que a tornaria atractiva para o turismo – a mole imensa da serra, servindo como pano de fundo, e de consolo a um aglomerado com demasiados trechos desordenados, feios e rebarbativos.»1


Podia dividir a Covilhã em duas partes: a encosta sul e a encosta norte, desenhadas pelas Ribeiras da Goldra (a Sul) e da Carpinteira (a Norte). A primeira de ocupação mais recente é por onde se chega. Aí percebe-se que houve uma maior procura do espaço público em virtude da ocupação. Menos densa é onde se apresentam os edifícios públicos mais recentes como o hospital, o centro comercial, a biblioteca e os vários polos da universidade. A habitação coletiva aqui parece mais desorganizada. Não são as ruas que comandam a ocupação dos lotes, mas os edifícios que se descolam do seu limite e surgem como peças individualizadas, sem uma visão de conjunto. A zona norte mais densa é onde encontramos o que se pode considerar o centro histórico. Aqui a identidade da Covilhã é o encontro de ruas apertadas e inclinadas, com edifícios de pouca altura (talvez como todos deveriam ser), numa escala do espaço público controlado ao tamanho da cidade. De apresentação austera, o granito representa a cidade e a ideia de sofisticação do construído.


«A falta de monumentos e edifícios de notável valor arquitectónico deve-se à pobreza da terra, sujeita a crises da sua indústria, à interioridade, e, como se disse, à falta de Mecenas e de homens ricos voltados à cultura. O próprio granito da montanha é aqui impróprio para a cantaria e mais adequado à feitura de muralhas e castelos. E a degradação das muralhas começou, afinal, com uma ordem do próprio Rei D. JoséI»2


De realçar ainda a encosta que liga estas duas partes. Durante esta curva vamo-nos relacionando com o vale e com pedaços de história da própria cidade. Neste espaço intermédio encontramos de tudo: palacetes revestidos de azulejo mostrando a sofisticação possível, edifícios públicos devolutos mais recentes vitimas das crises de investimento, ou mesmo a antiga estação rodoviária que se apresenta como memória do que foi a chegada à cidade.


«Ressalvando raras situações, a montanha ou a paisagem não surgem como inspiradoras de forma urbana ou arquitectónica. Como excepções notáveis apontam-se algumas das instalações da UBI e algumas das intervenções do Programa Polis, com obras de valor desigual mas que, no conjunto, ensaiam uma nova visão reestruturante da cidade. No extremo oposto temos a expansão urbana na planície que sugere um processo que envolve «grande desperdício imobiliário», onde sobressai o edifício do Serra Shopping, que vai buscar referências ao imaginário da montanha e se sobrepõe a tudo o resto à volta. O afastamento da cidade relativamente ao espaço natural como elemento simbólico e identitário tem o seu pior corolário, levando ao desordenamento paisagístico e funcional do espaço urbano.»3


É sobre dois edifícios destas encostas que recai a minha reflexão e dúvida. Subimos à cota alta e após algumas paragens e reflexões acerca dos «ducks» (para utilizar a expressão de Robert Venturi), que vão pontualizando a cidade, chegamos ao polo principal da Universidade da Beira Interior. Da rua somos confrontados com o tema que vamos ver no interior do edifício. Duas pontes, dois diálogos, duas linguagens. Falemos de reabilitação, pensei.


A compreensão de um objeto arquitetónico e da sua cópia é das mestrias mais difíceis de encontrar. As duas pontes fazem esse diálogo. Percebe-se que uma deixou de ser utilitária, constrói-se outra. Reconhece-se que deixou de ter a escala necessária para os novos usos. Aumenta-se a escala, mas a escala certa. Deixa de ser granito, para ser betão (revela-se modernista|pós-moderna?). Estende-se os vãos para criar relações. A escala aqui é o assunto. De fora, a ponte apresenta-se como uma ligação subtil, integrada, mas nova. De dentro, uma sala, um estar. O domínio da escala é revelado pela naturalidade com que se passa na ponte. É natural, pensei.


Ao entrar no edifício principal é nos marcado o tom. Duplo pé direito, uma porta fora de escala, acessos facilmente identificados e vãos controlados que nos apontam para pequenas relações com o exterior. Tudo se torna natural, sem dificuldade ele apresenta-se inteiro. Chegamos cá fora, de um lado o embasamento de uma pequena igreja - muro de granito - do outro os vãos da parte nova da biblioteca - betão. Novamente o confronto entre o novo e o antigo dialogam distanciando-se, criando uma tensão à qual é difícil de se ficar indiferente.


«O modelo de reabilitação arquitetónica empreendida no Pólo I da UBI foi definido pela equipa projetista responsável, o “Atelier GPA - Grupo Planeamento e Arquitectura”, tendo sido inicialmente apresentado à Direção Geral das Construções Escolares, que coordenou a execução da 1ª Fase da intervenção e, a partir de 1975, à Comissão Instaladora do Instituto Politécnico da Covilhã (2ª, 3ª, 4ª e 5ª fases). A equipa projetista foi liderada por Bartolomeu da Costa Cabral, que imprimiu a sua inconfundível marca na interpretação e valorização das pré-existências e na sua articulação com as novas construções projetadas, de sóbrio figurino, de que resultou uma nova e harmónica unidade, marcada pela horizontalidade e contenção em altura, aproveitando as plataformas aplanadas pela implantação das antigas construções fabris. Os resultados desta experiência piloto, pela qualidade evidenciada, aconselharam a sua continuidade e o acompanhamento da mesma por Bartolomeu da Costa Cabral, desde 1973 até 2004. Como sublinhou Nuno Teotónio Pereira, a intervenção realizada, não só permitiu preservar o património industrial, consolidar e valorizar a envolvente do casco urbano, ao mesmo tempo que potenciava a sua vitalidade, tudo resultando numa extraordinária mais-valia para a cidade.»4


Tudo parece ser certo, feito com tempo. Os vão aaltianos da biblioteca abrem-se e revelam a estrutura interior, moderna. De dentro evidenciam o muro. Chão de gravilha ajuda a integrar o conjunto. Termino junto a uma árvore seca, sem interior, mas viva. Dizem-me que foi opção do arquiteto mantê-la. Sento-me olho a serra e o toque entre o novo e o velho, granito e betão (desta vez estão juntos) como sempre se conhecessem. Ampliando a ideia do conjunto todos os vãos são pintados em encarnado-sangue-de-boi. Questiono-me porquê. Resposta que teria um mês mais tarde. Segundo o arquiteto Bartolomeu Costa Cabral «foi uma opção de um colaborador muito bom que tinha no atelier que decidiu por uma cor quente para contrastar com os materiais frios escolhidos».


Deste arquiteto conhecia pouco, apenas o Bloco das Águas Livres. Senti-me surpreso, como poderia uma obra destas ser tão anónima. Obra que demorou trinta anos de trabalho e acrescento, trás consigo o tempo. Pára o tempo. Transporta-nos para uma intemporalidade pouco reconhecida, deixa a vida acontecer. Intemporal porque fez sentido, ontem, faz sentido hoje, e irá fazer sentido, amanhã. Percebi que a pouca divulgação da obra do arquiteto Bartolomeu se devia a uma enorme humildade do autor. As fotos não transmitem a obra, o desenho não é suficiente para revelar o que ali se passa, apenas habitando, se percebe a força do edifício. Elogio máximo da arquitetura. O 'conceito' não é o tema. Aqui falamos dos assuntos 'duros' de arquitetura: luz, espaço, construção, desenho, modernidade, integração, reabilitação e por fim a escala, a escala certa. Tempo, poesia e carinho.Constrói-se a partir do lugar. Constrói-se com o lugar. Evidencia-se o antigo, com a obra nova.


Deixei de ser anónimo. Estou em frente da Ponte Pedonal da Covilhã. Projeto integrado no Programa Pólis visava a criação de uma nova relação do centro urbano da cidade com os bairros periféricos.

«O Polis Covilhã, liderado e desenvolvido pelo Arq. Nuno Teotónio Pereira, procurou “atenuar malfeitorias, adaptar relevo, preservar a identidade, [e] consolidar o tecido urbano”, através de uma metodologia que privilegiou o trabalho de campo, a ampla auscultação dos cidadãos, bem como uma estreita articulação com a equipa de trabalho do inventário do património industrial da Covilhã. Esta atividade foi desenvolvida no âmbito do protocolo celebrado entre a UBI (Museu de Lanifícios) e o Instituto Português do Património Arquitectónico, IPPAR, que, de entre outras finalidades visava elaborar a Carta do Património Industrial da Covilhã. Ao programa Polis deve-se a elaboração de três importantes instrumentos de planeamento urbano: os dois Planos de Urbanização dos vales das ribeiras da Goldra e da Carpinteira (em co-autoria daquele com Pedro Viana Botelho, arquitectos e ARPAS / Luís Cabral) e o Plano de Mobilidade Pedonal da Covilhã. Estes vieram a ser complementados por outros planos de pormenor, de que se salientam, pela exemplaridade e elevada qualidade, os do Rossio do Rato e de São João de Malta, da autoria de Nuno Teotónio Pereira, e o da Ponte da Carpinteira, da autoria de Carrilho da Graça ( J.L.C.G.- Arquitectos, Lda).»5


Estamos na Ribeira da Carpinteira. De cima observa-se o vale e o que foi a memória dos longos períodos de industrialização, pela presença das fábricas de lanifícios agora desativadas. A ponte lembra-me a linha de comboio para Évora. Reta na direção com curvas doces que amaciam a relação com o território. Não era só no desenho que a esta se revelava 'alentejana' mas também no despojo formal e o branco. De um lado a serra, do outro o vale, a Cova da Beira. O branco torna a ponte num objeto abstrato e distante. Não se aproxima das linguagens do lugar, procura apenas cumprir a função. Mas também desta ficamos confusos. Situada numa zona sem uma ocupação densificada liga a cidade a um edifício público: as piscinas da Covilhã. Parece vazia.


Intensa na clareza do desenho, evidencia a força do conceito, mas falha enquanto função. Reflexo disto são os novos elevadores que estão a ser construídos para se aceder a uma cota mais alta (onde eventualmente deveria estar a ponte). Custa-me fazer a pergunta certa e mais evidente. 'Quando a ponte não cumpre função o que lhe sobra?' não querendo arriscar uma resposta, fui encontrando outras maneiras de me relacionar com a obra. De longe avista-se um pequeno graffiti. Sinais dos tempos. O tempo aqui também parece confuso. Mas o elemento 'graffiti' coloca a ponte na contemporaneidade. A ponte torna-se contemporânea. De longe evidenciam-se os amarramentos. Tenta relacionar-se.


Do lado sul, uma rampa e uma escada permitem o acesso. A escala parece acertada. Do lado norte, uma parede ortogonal fecha a ponte e dá início a um percurso que liga à entrada das piscinas. O percurso eleva-se e é marcado por duas materialidades: pedra e madeira. A primeira controla a vertente, muro de suporte e a segunda fecha a relação com a cidade e com o edifício existente, apenas apresentado no final do percurso. A madeira está também presente no interior da ponte, cria o ritmo. De fora a ponte parece moderna, desenhada a traço fino a partir da linha, de dentro é densa, cria atmosfera e amplia a relação com o território, pós-moderna.


Estas duas obras relatam duas histórias diferentes: tempo, princípios, modernidade. Se a primeira sublinha a importância da construção e da envolvência com o lugar. A segunda evidencia a 'ideia' ou 'conceito'. A primeira anónima, a segunda amplamente publicada. A primeira é desenhada como sempre ali estivesse, a segunda procura evidenciar-se pela função. A primeira é desenho, a segunda imagem. A primeira novidade e a segunda tornou-se para mim, passado.


Aqui surge a dúvida e o motivo da minha reflexão. De que maneira o anonimato de uma obra torna a sua descoberta mais intensa? Atualmente, a importância que da imagem advém fundamentalmente do papel dos media na nossa cultura. Estes permitem a divulgação fácil, do instante, da obra arquitetónica. A realidade virtual veio apenas acelerar o processo e tornar a 'imagem' no seu motor. O perigo está quando se avalia a qualidade arquitetónica de um edifício por um processo técnico (renderização, imagem, fotografia) que nos é apresentada. Com isto, tornamo-nos acima de tudo avaliadores de imagens, de instantes. Vendem-nos fantasias com a 'imagem certa'. As reflexões acerca do poder da imagem na arquitetura são extensas, mas parece não ser conclusiva. Deve-se por isso perceber, em que medida, a 'imagem' se tornou tão importante que permita que arquitectura passe dos lugares e da função que lhe é exigida, para uma 'exigência da imagem'. Daqui pode-se questionar para quem estamos nós a projetar? Atrevo-me a responder de 'arquitetos' para 'arquitetos', talvez.


Os dois casos comparativos que refiro no texto acima, são disso evidência. Partimos da ideia que as duas obras têm uma elevada qualidade arquitetónica. No entanto, parece que a imagem influenciou na experiência das obras.


O anonimato da obra do arquiteto Bartolomeu Costa Cabral trouxe consigo uma maior intensidade na experiência. A novidade. A 'fantasia' não era a da imagem, a 'fantasia' era real. A extensa publicação da obra do arquitecto Carrilho da Graça criou a 'fantasia' em torno da obra. A imagem ideal associada a um discurso intenso e uma forte publicação da mesma retirou-lhe a fantasia do real. A Ponte Pedonal da Covilhã revela-se como uma obra paradigmática e de elevada intensidade, mas tal como Narciso destrói-se pela própria 'imagem refletida'.


De entre as dúvidas surgem algumas respostas: a primeira é que mais do que a visita à obra é a sua reflexão que se torna cada vez mais necessária - pessoalmente teve um 'efeito terramoto’.


A segunda é que começo tender para uma arquitetura anónima.




_____________________________________________________

1 MATOS, M. C. (2009), “Ponto, linha, plano: a edificação universitária na Covilhã”, IHRU Monumentos. Cidades, património, reabilitação. Dossiê: Covilhã, a cidade-fábrica, 29, pp. 110-119.

2 SILVA, J. A. (1996), História da Covilhã, Covilhã, Edição de autor.

3 VAZ, Domingos - Reinventar a relação cidade-montanha na Covilhã: uma discussão para a criação de uma nova marca urbana.

4 PINHEIRO, Elisa; SILVA, Manuel- A Covilhã: uma paisagem cultural evolutiva. Algumas notas sobre a (re) construção das memórias industriais da cidade, pag. 8.

5 PINHEIRO, Elisa; SILVA, Manuel- A Covilhã: uma paisagem cultural evolutiva. Algumas notas sobre a (re) construção das memórias industriais da cidade, pp. 15 e 16.

Featured Posts
Recent Posts
Archive
Search By Tags
Nenhum tag.
Follow Us
  • Tumblr Limpa Cinzento
  • Facebook Limpa Cinzento
bottom of page